Sobre lavar cebolas e outros aprendizados

Autora: Professora Bruna Betamin
Componente: Língua Portuguesa

 Sobre lavar cebolas e outros aprendizados.

Eu não sei vocês, mas eu estava naquele grupo de pessoas que acreditava que o isolamento social ia durar no máximo um mês. Ledo engano, né; como diz o saber popular “a ignorância é uma benção”, eu não imaginava tudo o que estava por vir… Conforme os dias iam passando, fomos todos tomando consciência do tamanho e da complexidade do nosso problema; a partir daí muita coisa precisou ser repensada, incorporada à rotina, modificada, abandonada. Aprender virou uma constante para todos nós, mesmo nas coisas mais básicas.

Como professora, o primeiro impacto que senti foi o distanciamento da sala de aula. Não apenas pelas mudanças que seriam necessárias no meu modo de planejar, de ensinar, de pensar conteúdos, mas principalmente, pela convivência diária com os meus estudantes. Quem me conhece sabe que sou uma entusiasta do diálogo e da troca, mas como estabelecer um diálogo profícuo com tantas limitações? E aqueles dois minutinhos antes e depois das aulas mais individualizados? Como saber se o vivente tá num dia ruim, ou passando por uma situação complicada, sem olhar no olho? Na verdade, quem não tá passando por uma situação complicada?

No papel de estudante, vi as minhas aulas serem canceladas por tempo indeterminado. Vi meus professores preocupados com seus estudantes, com seus empregos, com a universidade, com debates sociais, com o país. Os planos para meus trabalhos acadêmicos ficaram suspensos, os congressos aos quais fui convidada ou aceita para participar também pareciam figurar numa outra realidade. Somente no final de junho minhas aulas foram reorganizadas e retomadas, para minha alegria. Mas até junho muita coisa aconteceu, parece inacreditável que muitos de nós, inclusive eu, viajamos nas férias. Volta e meia nas quintas-feiras, através dos #TBT vejo fotos do mundo antes do Corona e elas me parecem uma realidade que há muito vivemos.

Os dias parecem todos iguais. Não há Netflix que resolva o tédio. Mil cursos online à disposição, quase nenhum ânimo ou concentração para realizá-los. Videochamada com a família para saber se estão todos bem, para amenizar a saudade, ou não. E lives. Infinitas lives. Se abrir a geladeira tem live. Mais cedo ou mais tarde a gente acaba se rendendo a elas, seja Zeca Pagodinho, Sandy e Júnior, Emicida ou Fresno.  Se antes da pandemia as redes sociais já foram o centro de acalorados debates que as apontavam como um problema, neste momento de distanciamento social elas aparecem como as ferramentas que trazem alívio na separação. Eu tenho um amigo com quem troco memes quase que diários sobre nossos infortúnios e esse é o nosso jeito de desopilar, rir da nossa situação e dizer que vai ficar tudo bem.

As demonstrações de afeto também foram se modificando, desde o cumprimentar com o cotovelo até o ato e enviar mimos para a casa de pessoas queridas. O afeto é sinônimo de cuidado, e, neste momento de pandemia, pequenas atitudes de cuidado são grandes provas de amor. Reduzir as saídas a apenas situações indispensáveis, e cuidar para que cada saída e retorno ao lar não coloque nem a gente, nem outras pessoas em risco. Lavar as mãos incontáveis vezes, usar a máscara, distanciar-se fisicamente das outras pessoas em ambientes coletivos. Tomar banho ao voltar para casa, separar os calçados utilizados na rua, higienizar as compras, lavar as cebolas antes de guardar! Toda essa série de precauções denota o zelo pela vida, seja a nossa, a daqueles que nos cercam ou de quem a gente nem conhece, mas tá na mesma luta que a gente para conter o vírus.

Eu sei que tem dias que a gente só reclama, que os pensamentos parecem todos pessimistas, que a gente não consegue fazer nada de útil – e depois se culpa por isso -, que parece que só a gente sente como se um elefante tivesse colocado uma pata no nosso peito e estivesse difícil demais de suportar. Eu me sinto assim às vezes e acho que tu também. Talvez seja por falta de “uma linha de chegada”, se houvesse como datar com precisão quando o isolamento vai acabar, quem sabe a gente enxergasse a proximidade desse dia e isso inspirasse mais otimismo. Mas, infelizmente, ainda não há cura ou vacina. Não há prognóstico de retomada da vida normal e a cada dia que passa nesta quarentena tende a ficar mais exaustivo permanecer nela – eu já contei mais de cem dias…

Nos dias de desânimo, o que me resta é olhar para trás e reparar nos recursos que construí para seguir a vida neste isolamento social. Não tenho o convívio da sala de aula, mas posso ouvir e ver meus alunos através das nossas aulas online – e acreditem, queridos, meu dia melhora muito com as interações de vocês. Não tenho a presença dos meus familiares porque moro sozinha, mas recebo vídeo e áudios do meu sobrinho de dois anos, e assim posso acompanhar seu crescimento. Não tenho as “junções” com os amigos aos finais de semana, mas podemos realizar videochamadas, como se estivéssemos reunidos. Continuo tendo que manter diversos cuidados com saídas e compras, mas tenho cozinhado melhor, feito bolo e pão – afinal, só é quarentena se tu fizer pão – e já incorporei à rotina a higienização dos vegetais. Essas coisas que parecem pequenas fazem com que aquela pata do elefante dê uma trégua no peito da gente e o distanciamento social fique suportável. Esses aprendizados ficarão após a pandemia, mesmo sem ter feito cursos online.

O céu está diferente
Diário de Quarentena